As Glórias desconhecidas do Imã: O silêncio, a ausência e o islamicate na Índia da Colecção Kwok On

Por JASON KEITH FERNANDES

 

(Texto da conferência apresentada a 19 de Abril, 2017 no Museu do Oriente, Lisboa no âmbito do  ciclo A Índia Visual. PDF em português e PDF em inglês.)

 

Antes de mais gostaria de agradecer a oportunidade que me foi dada para estar, hoje, aqui.

 

Em primeiro lugar gostaria de agradecer, à minha colega do CRIA Inês Lourenço por me ter convidado a fazer esta apresentação. Tenho seguido a série Índia Visual durante algum tempo e sempre alimentei o desejo secreto de poder participarnesta plataforma. Por esta oportunidade Inês, muito obrigado.

 

Gostaria também de demonstrar a minha gratidão para com a equipa do Museu Oriente: Liliana Cruz, Sofia Lopes e Cátia Souto por todo o apoio prestado durante esta apresentação. Aproveito a ocasião para agradecer também a presença da orientadora da minha tese de doutoramento, a Professora Doutora Rosa Maria Perez. Por último, mas de modo algum por ordem de importância, quero de agradecer a presença de todos os que aqui estão presentes hoje.

 

Antes de entrarno assunto que hoje nostraz aqui, gostaria de fazer uma confissão: Quando recebi este convitefoi-me dito que teria a possibilidadede visitar a reserva do Colecção Kwok on e seleccionar uma peça, ou peças, sobre a qual gostaria falar.

 

Qualquer apreciador de arte sabe que visitar as reservas de um Museu é uma experiência única. Fiquei particularmente entusiasmado porque desta maneira poderia ter a oportunidade de confirmar se a minha intuição, sobre a natureza desta colecção, seria uma realidade ou simplesmente uma suposição . O meu pressentimento dizia-me queo núcleo dedicado à índia da colecção Kwok On seria um conjunto de objectos Hindus. Quer dizer, a Índia teria sido implicitamente entendida como ‘Hindu’ por quem constituiu acolecção. Infelizmente a minha intuição não me enganou. Na reserva da Colecção, encontrei um acervo extraordinário mas na sua maioria associado ao culto hindu. Ausente deste espólio, pelo menos na primeira vista, estão objectos ligados ao Islão e à Cristandade. Esta é a ausência a que se refere o título da minha apresentação – e sobre a qual gostaria de reflectir por alguns instantes.

Como é possível ver neste anúncio da TAIP de 1961, que retrata uma Goa orientalizada e Hindu, existe um antigo costume de equiparar a Índia ao Hinduismo. Este hábito surgiu inicialmente com as representações dos Orientalistas sobre a Índia, onde Islão e Cristandade – tradições defé que existem no Sul da Ásia quase desde as suas primeiras manifestações – foram quase sempre representadas como tradições da fé estrangeiras. Como qualquer observador atento à vida política contemporânea na Índia poderá testemunhar, este costume recebe apoio oficial desde a concepção da Republica Indiana. O que épreciso sublinhar, porém, e o facto de o Hinduismo ser uma concepção do Século XIX. O Hinduismo contemporâneo surgiu como resultado de dois processos distintos que por vezes estão relacionados. O primeiro está representado nesta imagem de uma litografia intitulada “Our Moonshee” [uma entre as 40 chapas produzidas por George Francklin Atkinson na segunda metade do século XIX, durante a sua estadia no Sul da Ásia]. Este tendência é  resulto do trabalho dos estudiosos orientalistas do século XVIII, muitos deles no serviço do East India Company, que em conjuntocom os seus secretários nativos (ou munshis) pertencentes a castas brâmanes ou outras castas dominantes, agregaram as diversas tradições sagradas presentes no Subcontinente numa única religião – o Hinduismo. O segundo processo foram as sucessivas tentativas nacionalistas das várias castas dominantes, especialmente do norte do Subcontinente, em criar uma única comunidade que pudesse herdar o British Raj. Desta forma, quando o Dr. S.V Radhakrishnan (1923) menciona a “filosofia Indiana” fala apenas sobre filosofia ‘Hindu’. O facto, porem, é que o Hinduismo pode ser produzido pelo silenciamento da complexidade destas múltiplas práticas de fé e as suas respectivas localizações nos contextos regionais e locais. O que ganha poder através deste processo de silenciamento é naturalmente a narrativa do bramanismo. Foi exactamente isto que Radhakrishnan de facto fez nos seus livros, privilegiar a filosofia bramânica. É verdade que muitas vezes o Bramanismo co-existe, muito embora com relações muito complexas, com uma variedade das crenças locais. Se apenas se prestar atenção ao “Hinduismo” e não a uma multiplicidade de crenças e práticas, é natural quea narrativa bramânica seja a única que ganhe voz. As restantes narrativas dentro do próprio hinduísmo são ignoradas ou silenciadas. É a este silêncio, ou ao processo activo deste silenciamento, que o título desta apresentação se refere.

 

Antes de discutira forma complexa como o Islão está presente no Subcontinente, até mesmo nas coisas que parecem à primeira vista hindus, permitam-me reflectirum pouco mais sobre as diversas ausências na representação das práticas de fé subcontinentais. Como referi anteriormente, tanto o Islão com a Cristandadetêm presença nosul da Ásia, destas as suas primeiras manifestações. No entanto, enquanto há uma clara ligação entre Cristianismo na Índia com São Tomás, o apóstolo de Cristo em 52 A.D., o consenso académico diz-nos que as comunidades cristãs foram estabelecidas na Índiano século VI da nossa Era. Esta imagem mostra o muito popular do milagre da conversão de brâmanes da região de Kerala ao Cristianismo por São Tomás. O Islão, por outro lado, foi estabelecido cerca de século VI da nossa era e chegou ao Subcontinente, mais uma vez à região de Kerala, no Século VII. Esta imagem está datada como sendo do século VI e provem da Cheraman Malik Masjid em Kodungallur, o actual Estado da Kerala nosulda Índia. E provável que este edifício tenha sido a primeira mesquita dosul da Ásia. Apesar de terem sido introduzidas quase em simultâneo comas suas primeiras manifestações e terem uma longa história no Subcontinente Asiático, estas tradições estão muitos vezes, demasiadas vezes, mantidas fora da representação da Índia por serem vistas como tradições de fé estrangeiras. Esta exclusão tem origem nas tradições intelectuais dominantes desde o movimento Romântico. Os Românticos crêem autêntico apenas fenómenos com uma ligação clara ao solo, à natureza do local. Segundo esta lógica, qualquer prática exterior, não poderia ser considerada autêntica, nem uma tradição válida nesse território. As implicações desta prática tiveram efeitos devastadores para os Cristãos e Muçulmanos na Índia, que foram e são ainda, vistos como estrangeiros e muitas vezes alvo justificado de manifestações expressas ou subtis de violência nacionalista.

 

O absurdo desta proposição é provavelmente evidente na maneira como acabei de apresentar a história do Cristianismo e do Islão na Ásia doSul, apesar da sua presença no Subcontinente deste as suas primeiras manifestações. Em adição, dada a diversidade de práticas na Ásia doSul e a sua fluidez, o antropólogo Jackie Assayag assinalou correctamente que:

Tendo em conta um sistema social marcado por tanta turbulência, é impossível considerar o Islão como uma entidade introduzida num universo Hindu alheio.(2004: 42).

 

A exclusão da Cristandade da Índia tem também uma história interessante em Portugal. É sobre esta exclusão que deveríamos reflectir para um instante, antes de ingressarmos pelo Islão, que será o centro da minha apresentação de hoje. É comum entre os académicos portugueses fazer uma ligação directa entre a Cristandade eo passado colonial do seu país. Diferentes grupos respondem a esta questão de distintas maneiras. Posso identificar duas respostas, ambas bastante problemáticas. A primeira, deriva do conjunto de estudiosos que perpetuam a retórica do Estado Novo, vêem a Cristandade como uma dádiva portuguesa aos “Indianos”. Esta perspectiva manifesta uma visão dos portugueses como superiores vis-a-vis aos grupos católicos da Ásia de Sul. Os Portugueses da metrópole (porque também somos Portugueses) são doadores e, por sua vez, os Portugueses do Subcontinente Asiático recipientes passivos. A segunda perspectiva, respondendo à retórica do Estado Novo, vê o Cristianismo como uma indesejável imposição colonial sobre “os Indianos”. Por esse motivo, os membros deste segundo grupo são extremamente apologéticos relativamente à introdução de Cristianismo e tentam compensar a violência dos seus antepassados representando o lado “hindu” de Índia. O que estes dois grupos parecem esquecer é que o Cristianismo na Índia, mesmo o Cristianismo introduzido pelos portugueses, tem uma dinâmica própria e independente. Ao Cristianismo, e mesmo ao próprio Catolicismo, foram dados diferentes formas interiores e exteriores.Se existe uma ausência na representação do Cristianismo na Ásia do Sul, é portanto, uma ausência deste Cristianismo orgânico. Isto não querdizer que o Cristianismo na Ásia do Sulsejaum sincretismo, popularem algumas representações, mas um Cristianismo próprio e ortodoxo como uma das suas diversas formas Europeias. Assim, enquanto podíamos agradecer aosportuguesespor serem a “luzes do Ocidente” e por terem trazido a luz do Evangelho para a Ásia (Xavier, 2008) podíamos ao mesmo tempo reconhecer que a nossa prática do Catolicismo ésemelhante e ao mesmo tempo distinta. É a presença deste tipo de Cristianismo orgânico que pessoalmente gostaria de ver atestando nos museus em Portugal: O Catolicismo na Índia não é apenas o que os portugueses deixaram mas tambémo que os agentes locais fizeram desta religião.

 

Já consumi demasiado tempo com assuntos periféricos e devo por isso chegar ao cerne da minha apresentação de hoje, ou seja, a maneira como as práticas associadas com a fé Shiita e àfigura histórica do Ímã Hussein, são centrais para a cultura do sul da Ásia (indiana), e como a sua presença é activamente silenciada.

 

Com este propósito, gostaria de vos mostrar o objecto central desta apresentação. Temos na nossa frente a imagem, ou ídolo, da Deus a Yellamma, cujo nome significa mãe de todos. Como é evidente, o objecto é icónico – quer dizer, representa a forma humana da Deusa, sendo o seu rosto e mãos em prata justapostas sobre um outro objecto. A Deus a vesteum sari e é ornamentada com colares e outros objectos representantes da sua estatura real. Não devemos esquecer que nosul da Ásia, realeza e divindade estão intimamente ligadas. Ao mesmo tempo, a maneira como vemos a imagem aqui representada, em cima da cabeça de um devoto, é como normalmente seria utilizada, permitindo ao devoto pedir esmolas.

 

A narrativa, dominante e bramânica, da Deus a Yellamma é muito interessante e o conhecimento deste mito permite-nos apreciar as diversas maneiras como este é apresentado noutras versões.

 

Na versão bramânica, a narrativa começa tipicamentecom uma mulher brâmane Renuka, mulher do rishi, ou sábio ascético, Jamadagni. A história diz-nos que, suspeitando da infidelidade de Renuka, Jamadagni ordena que os seus filhos mais velhos matem a sua mãe. Deforma sensataos mesmos recusaram, o que deixou Jamadagni ainda mais furioso. Jamadagni comanda então Parashurama, o seu filho mais novo, para que esteexecute o seu mandamento. Parashuram obedecendo ao seu pai, mata a sua mãecom o seu parashu ou machado.

 

Infelizmente, ao mesmo tempo que decapita a mãe, Parashuram degola também uma mulher da casta baixa, que dependendoda versão era a criada de Renuka ou uma senhora bondosa que tentava ajudar Renuka. Jamadagni exultante por ter um filho obediente, promete a Parashuram tudo o que ele possa querer. Parashurama pede que a sua mãe seja trazida de novo à vida. Jamadagni concorda e Parashurama rapidamente junta as cabeças e os corpos da mãe e da bondosa senhora e dá lugar ao seu pai para que este execute o milagre. Quando as mulheres são devolvidas à vida reparam que Parashuram trocara as suas cabeças. Assim, a brâmane Renuka tem agora o corpo da mulher da casta baixa e Yellamma ode uma mulher de casta alta. Dentro do sistema de castas este é um problema bastante grave. A situação é resolvida com o reconhecimento do corpo como constituinte de identidade. Por tanto, ao corpo de Yellamma que tem agora uma cabeça de casta alta é dado status de divindade. Por esta razão, na narrativa bramânica sobre a deusa Yellamma, a deusa é muitas vezes chamada Renuka-Yellamma e adorada de duas maneiras diferentes, como a deusa de casta alta e meiga Renuka ou adeusa de casta baixa e volátil Yellamma.

 

Existem outras narrativas sobre a deusa Yellamma, entre elasa que passarei a descrever de seguida e que deriva da casta Dhangars da região da Kolhapur, noactual Estado da Maharashtra (Skyhawk, 2008). Esta casta dedica-se à guarda de gado nas regiões dos Western Ghats e no planalto do Deccan e é socialmente bastante marginalizada.

 

A narrativa dos Dhangars começa por enfatizar o facto de Yellamma ser a mais nova e teimosa de sete irmãs: Yekva, Mhakva, Durgava, Durgva, Margva, Jakva e Tukva. Como ilustração temos aqui uma imagem das sapta matrikas, ou as sete deusas, que no seu conjunto é muito comum em várias partes do Subcontinente. Um dia, durante uma caçada, Yellamma sentiu sede e por este razão separou-se das suas irmãs. Embora se tenha perdido das suas irmãs, Yellamma acaba por descobrir um lago que pertencia ao deus Mahadev. Enquanto estava ao pé do lago, viu uma planta do grão do bico, que por fome se sentiu tentada a colher. Quando se inclinava para a apanhar Yellamma ouviu uma voz (Mahadev) dizer, que se assim o fizesse, seria lançada sobre sitoda a culpa. Sendo teimosa, Yellamma continuou e arrancou a planta. No mesmo instante apareceu na palma da sua mão uma bolha ardente.

 

Sozinha e amedrontada, Yellamma fugiu até ao momento em que não conseguiu suportar maisa dor. Yellamma rompea bulha e descobre nelaum coágulo desangue, do qual nasce um pequeno bebé. O bebéera Parasarama ou Parasurama.

 

Só depois de dar luz Parasurama e caminhar um pouco mais é que Yellamma encontra finalmente as suas irmãs. Quando as mesmas se apercebem da existência de um bebé, gritaram: “fica longe da nós. Não te aproximes. Tornaste-nosparentes de um bastardo! Não queremos tocar-te e não te queremos no nosso grupo. Como deste à luz um bastardo, afasta-te! Nunca mais voltes procurar-nos!”

 

Sem ter para onde ir, sozinha e depois de muito andar, Yellamma encontra dois irmãos Muçulmanos Asan e Usan, ou seja, os Imãs Shiitas Hassan e Hussein. Pede-lhes e é-lhe concedido abrigo e passa a noite na varanda da sua casa. Na manhã seguinte, Yellamma pede-lhes que lhe dêem um lugar para viver. Como resposta, os dois irmãos colocaram uma pedra numa fisga e lançaram a mesma pedra instruindo Yellamma que a seguisse. O lugar onde a pedra caísse seria seu. Yellamma cumpriu as instruções dos dois irmãos e seguiu a pedra que caiu na colina de Saundatti.

 

Yellamma chegou à colina, onde a pedra tinha caídoao pôr-do-sol, encontrando a casa de Jagul Satyava, a quem ela pediu abrigo pela noite. Satyava respondeu dizendo que ele gostaria de lhe dar abrigo mas que a sua casa era uma casa muçulmana e havia por isso carne. Yellamma insistiu e acabou por ficar. Quando os filhos de Satyava, Bhram, Apa, Asane Usan regressaram a casatinham com eles duascabras selvagens. Yellamma exclamou que agora que a sua tia materna tinha regressado a casa, o seu filho deveria partilhar com eles amesa de jantar. Os rapazes acederam ao pedido de Yellamma, que com Parasarama no colo, se sentou com eles à mesa.

 

Esta narração informa-nos também que Yellamma pulverizoua carne que ali se encontrava com o néctar da imortalidade, devolvendo assim a vida aos animais. O Bebé Parasaram foi aceite pelos rapazes que com elepartilharam a refeição com grande alegria. Na manhã seguinte, os quatro irmãos edificaram um templo à virgem deusa na colina deSaundatti, para que desta maneira houvesse espaço para todos. A deusa Yellamma e Parasaram vivem desde aí no templo na colina. No ecrãestá o actual templode Saundatti.

 

Para aqueles que estão acostumados às nítidas divisões entre hindus e muçulmanos, esta narrativa pode ser chocante. De facto, este conto parece seguir todos os padrões das telenovelas. Segundo o Skyhawk (2008), este narrativa sublinha o papel que os heróis Shiitas Hassan e Hussein, têm na Ásia doSul, como protectores das mulheres e crianças abandonadas. Existem por outro lado, muitos que utilizando as lentes do poder, sugerem que esta narrativa demonstra a medida em que os devotos do culto de Yellamma negociaram uma relação de convívio com os Muçulmanos. Mesmo concordando com todas estas razões, penso que estas respostas racionais não têm capacidade de capturar a complexidade de o que esta acontecer. Querendo isto dizer, não demonstram a extensão em que o Islão se tornou parte da realidade dos locais e moldou as suas crenças, incluindo o Hinduísmo contemporâneo.

 

Antes de prosseguir, será necessário fazer um pequeno desvio para apresentaros intervenientes neste conto: Hassan e Hussein.

 

A morte do profeta Muhammad em 632 da nossa Era provocou uma crise entre a comunidade jovem Muçulmana. Enquanto uns acreditavam que Ali, o genro do profeta devia ser o Califa ou líder da comunidade, outros acharam que Abu Bakr, um dos companheiros do profeta deveria tomar essa posição. Abu Bakr torna-se Califa. Foi somente com o assassino do terceiro Califa que Ali foi reconhecido como Califa. Mas este foi também assassinado e o Califado foi tomado por Yazid e posteriormente pelo seu filho, Muawiya.

 

Hassan e Hussein eram filhos do Ali. Hassan foi assassinado em 670 da Era moderna, alegadamente por iniciativa de Yazid. Hussain foi martirizado na famosa batalha de Karbala contra as forças de Muawiya em 680 EC. Foram estes os eventos que consolidam e podem ser considerados diferenciadores entre Muçulmanos Sunnitas e Shiitas (estes últimos considerados como partidários de Ali). O que é comum à maioria dos Shiitas é a comemoração do martírio do Imã Hussein e os seus companheiros na batalha de Karbala. O mesmo Imã foi martirizado no décimo dia do mês do Muharram. Por esta razão, os primeiros dez dias do mês do Muharram são marcados por várias cerimónias incluindo o ritual do luto e várias procissões. A imagem no ecrã mostra as principais características – o desfile de Duldul, as bandeirolas chamadas alamse replicas dos túmulos dos Imãs, denominados tazias.

 

Existem mais ligações entre o ídolo de Yellamma e a simbologia Shiita. No seu estudo sobre o Planalto do Deccan, onde a adoração da Yellamma predomina, Jackie Assayda diz-nos que as ofertas dadas a outra divindade, Rajabaug Savar ou Sufi Bar Shah, são pequenos cavalos de prata chamados Duldul (2004: 159, 168). Mais uma vez, aqueles que conhecem as práticas dos Shiitas sabem que Duldul, ou Duljinah, é o nome do cavalo dado pelo Profeta ao seu neto Husseine este é uma das figuras presentes nas procissões do Muharram. Nestas procissões, um cavalo branco sem cavaleiro, com flechas na sela é desfilado em representação o Duljinah depois da batalha de Karbala. O que seria interessante seria que este cavalo em prata tivesse também lugar na colecção Kwok On como uma artefacto associado ao culto de Yellamma.

 

Outro facto curiososão as palmas da nossa Deusa Yellamma. São obviamente palmas levantadas para dar bênções. Mas, o que parece interessante, e como estas imagens demonstram, as suas palmas são semelhantes as utilizadas na panja alam, que tem lugar nas procissões Shiitas. Panja em Persa significa cinco, a palma com cinco dedos representa as cinco almas puras da família do Profeta: Muhammad, Fatima, Ali, Hassan e Hussein. Também constato que palmas semelhantes são utilizadas em cerimónias nos templos Goeses, sendo que o Shiismo teve alguma influência em Goa por esta estar dentro da Sultanato de Bijapur.

 

O Shiismo teve um impacto profundo no Subcontinente, especialmente no planalto do Deccan sobretudo por causa dos Sultões do império Bahamani (1347-1527) e mais tarde por causa do Sultões da dinastia Adil Shah deBijapur que também seguiram o Shiismo (os próximos slides mostram a extensão geográfica do império Bahmani, o seus Estados sucessores e finalmente o Estado do Bijapur). A popularidade das figuras dos Imãs Hassan e Hussein e a sua presença no culto da deusa Yellamma resultam da influência destas duas dinastias. Mas gostaria de sublinhar o facto de que enquanto o “Hinduismo” é muitas vezes apontado como tendo exercido influência sobre os fés ditas estrangeiras, como Islão e Cristianismo, o que não é tão reconhecido é a maneira como estas diferentes fés também tiveram grande influência sobre as práticas de fé no Subcontinente.

 

Porém, a influência do Islão e dos Muçulmanos, vai muito além da influência nas práticas de fé e crenças. Existe também uma enorme Influência no quotidiano e na esfera do profano. Para capturar a amplitude desta influência, em 1974 o erudito professor de Estudos Islâmicos Marshal Hodgson introduziu o termo Islamicate no seu livro “The Venture of Islam”. Neste livro, Hodgson sugere que o Islamicate se referia não directamente à religiãomas à complexa história sócio-cultural associada ao Islão e aos Muçulmanos, tanto entre Muçulmanos, como não Muçulmanos.

 

Este conceito poderia ser ilustradocom a imagem deste traje que vemos na famosa produção de Mahabharata de Peter Brook. Vulgarmente compreendido como traje Indiano, é de facto inspirado pelas Jama persa. O Uso de roupas,persas ou árabes pelos povos do Subcontinente seria um exemplo perfeito deIslamicate. Para que se entenda melhor o conceito e tambémo traje , é necessáriofazer referência ao famoso ensaio do Philip Wagoner (1996) sobre as opções de vestuário dos reis de Vijayanagar. Como sabem, é muito popular representar Vijayanagar como o último reinado Hindu, último bastião contra a dita invasão Muçulmana e  dos Sultanatos Islâmicos que o rodeavam. Porém, o trabalho do Wagoner demonstra que os aparentemente príncipes“Hindus” do Vijayanagar tomaram como seu não somente o traje Islâmico como também os títulos do islamicate. Por exemplo, apresentam-se com “Sultão entre os reis Hindus”. Este título demonstraa maneira como as práticas dos reis Muçulmanos, que eram dominantes no Subcontinente, foram imitadas pelos não Muçulmanos. Poderia também ter tido como efeito o incentivo à conversão ao Islão ou a inclusão de práticas Muçulmanas nasjá existentes. Esta imagem mostra-nos um mural de um templo em Lepakshi, no actual Estado de Andhra Pradesh,onde podemos ver diversas cortesãs em traje do corte.

 

O que também é interessante é que alguns Dhangars poderão ter usado o jama em ocasiões de maior cerimónia. Como é exemplo esta imagem, onde vemos Dhangars a dançar num palco, em 1954 no antigo Estado da Índia. É bastante óbvio que os seus trajes são jamas.

 

Gostaria de terminar esta apresentação fazendo referência a uma última prática que demonstra a importância, não só do Islão, ou do Islamicate, mas também do Islão Shiita a par do Islamicate na Ásia do Sul. É a esta influência que se refere o ter moImã no título desta apresentação.

 

Como foi dito anteriormente, o martírio do Imã Hussein marca os primeiros dez dias do mês do Muharram. No norte da Índia, no reino do Awadh, i.e. contemporânea Lucknow, o Moharram é marcado com uma série de rauzakhawni, ou luto, onde são recitadas lamentações pelo Imã Hussein em cerimónias públicas. Apresento-vos esta imagem do rauzakhawni e em particular as lâmpadas nesta imagem. Esta imagem é uma aguarela sobre mica de escola Anglo-Indiana de Patna, demeados do século XIX. O que é curiosoé que estas lâmpadas são semelhantes às que são usadas pelos Hindus de Goa e Maharashtra durante o Diwali. Popularmente imaginados como coisas indígenas, o facto é que estas lâmpadas são marcas do Islamicate sobre os aspectos mais íntimos da vida “Hindu”.

 

Como é que estas lâmpadas chegaram ao estado costeiro de Goa vindas de Lucknow no interior do Subcontinente? Uma possível resposta seria através dos Maratas, quem foram embaixadores do Islamicate, ou Persianate, ao estilo dos príncipes Muçulmanos quando estes se tornaram no grande poderio do Subcontinente. Podíamos agora passar ao slide que mostra alguns retratos de Shivaji o rei Marata (1627/1630[1] – 1680) e o Sultão do Bijapur Muhammad Adil Shah (r.1627–1657), para demonstrar como estes dois homens participaram numa mesma esfera cultural: o Islamicate ou o Persianate. Podemos também ver como os dois estão vestidos com jamas, tal como o último Peshwa Madhav Rao Narayan, seu ministro Nana Fadnavis e os criados presentes neste retrato.

 

Não será seguramente surpreendente que a comemoração do Moharram tenha sido uma das maiores festas em lugares como Poona ou Bombaim, sendo que esta primeira cidade está activamente associada ao poder Marata. Como ShubnamTejaniaponta:

Em Poona, o Muharram, comemoração Shiita do martírio dos netos do Profeta, era traditionalmente uma festa trans-comunitária. Embora seja uma ocasião marcadasomente no calendário Shiita, era popular entre muitas comunidades. Músicos Hindus eram pagos para tocar, as bailadeiras cantavam marsias, os carros debois dos trabalhadores Hindus alugados para transportaros tazias dos Imãs. Várias secções da população Hindu preparavam frequentemente os seus próprios tazias, que desfilavam e eram imersos lado a lado com os dos Muçulmanos. (2007: 56)

 

Tejani e outros estudiososafirmam que foi com o intuito de quebrar o espírito de harmonia existente entre comunidades, durante as procissões do Muharram, que o líder Hindu nacionalista Balgangadhar Lokmanya Tilak começou a organizar a festa pública do Ganesh. Esta imagem mostra Tilak na primeira festa pública do Ganesh em Poona.

 

A última imagem ilustra uma procissão contemporânea dedicada ao deus Ganesh na cidade de Bombaim. Este é um fenómeno épico, recrutandoum número imenso de membros das várias associações bairristas para grandes procissões que acabam com a imersão dos ídolos do deus Ganesh. O que é interessante constatar é que estas procissões eram muito semelhantes às do Muharramna mesma cidade durante o século XIX e a primeira metade do século XX, onde, mais uma vez, as procissões dos tazias eram uma festa do bairro, que atraianão sóos fiéis, mas também lideres os gangues, rufiões e outros tantos curiosos.

 

Gostaria de concluir com a sugestão de que a Índia, ou Ásia de Sul e mais complexa do que imaginamos. E definitivamente muito mais do que um local Hindu e a apresentação de hoje tentou chamara vossa atenção para a maneira como esta complexidade é muitas vezes ignorada e negada. Uma maior abertura e conhecimento das práticas regionais e locais demonstra que a maneira como o Islão, e em particular o Islão Shiita, foi fundamental para a formação do cultura secular no Subcontinente, mas também para a cultura religiosa de grupos que hoje não são Muçulmanos ou Cristãos mas vistos como apenas Hindus.

 

Referências

  • Assayag, Jackie. 2004. At the Confluence of Two Rivers: Muslims and Hindus in South India. New Delhi: Manohar.
  • Skyhawk, Hugh van. 2008. “Muharram Processions and the Ethicization of Hero Cults in the Premodern Deccan.” In South Asian Religions on Display. Religious Processions in South Asia and in the Diaspora, edited by Knut A. (Editor-in-Chief) Jacobsen, 115–25. Oxon: Routledge.
  • Tejani, Shabnum. 2007. Indian Secularism: A Social and Intellectual History 1890-1950. “Opus 1.”Ranikhet: Permanent Black.
  • Wagoner, Phillip B. 1996. “‘Sultan among Hindu Kings’: Dress, Titles, and the Islamicization of Hindu Culture at Vijayanagara.” The Journal of Asian Studies 55 (4): 851–80.

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